segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Manuel Botelho de Oliveira - Poemas



Ponderação do rosto, e olhos de Anarda

Quando vejo de Anarda o rosto amado,
Vejo ao Céu, e ao jardim ser parecido;
Porque no assombro do primor luzido
Tem o Sol em seus olhos duplicado.

Nas faces considero equivocado
De açucenas, e rosas o vestido;
Porque se vê nas faces reduzido
Todo o Império de Flora venerado.

Nos olhos, e nas faces mais galharda
Ao Céu prefere quando inflama os raios,
E prefere ao jardim, se as flores guarda:

Enfim dando ao jardim, e ao Céu desmaios,
O Céu ostenta um Sol; dois sóis Anarda,
Um Maio o jardim logra; ela dois Maios.


********************************************************

A um grande sujeito invejado e aplaudido

Temerária, soberba, confiada,
Por altiva, por densa, por lustrosa,
A exalação, a névoa, a mariposa,
Sobe ao sol, cobre o dia, a luz lhe enfada.

Castigada, desfeita, malograda,
Por ousada, por débil, por briosa,
Ao raio, ao resplendor, à luz formosa,
Cai triste, fica vã, morre abrasada.

Contra vós solicita, empenha, altera,
Vil afeto, ira cega, ação perjura,
Forte ódio, rumor falso, inveja fera.

Esta cai, morre aquele, este não dura,
Que em vós logra, em vós acha, em vós venera,
Claro sol, dia cândido, luz pura.


****************************************************************


À ILHA DE MARÉ (fragmento)

Tenho explicado as fruitas e legumes,

que dão a Portugal muitos ciúmes;

tenho recopilado

o que o Brasil contém para invejado,

e para preferir a toda a terra,

em si perfeitos quatro AA encerra.

Tem o primeiro A, nos arvoredos

sempre verdes aos olhos, sempre ledos;

tem o segundo A, nos ares puros

na tempérie agradáveis e seguros;

tem o terceiro A, nas águas frias,

que refrescam o peito, e são sadias;

o quatro A, no açúcar deleitoso,

que é do Mundo o regalo mais mimoso.

São pois os quatro AA por singulares

Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares.


Poemas de Gregório de Matos III - Satíricos

Define sua Cidade


De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro foder.

Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.

Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.

****************************************************************************






Aos principais da Bahia, chamados os Caramurus.

Há cousa como ver um Paiaiá,
Mui prezado de ser Caramuru,
Descendente de sangue de tatu,
Cujo torpe idioma é cobepá.

A linha feminina é carimá
Moqueca, pititinga, caruru
Mingau de puba, e vinho de caju
Pisado num pilão de Pirajá.

A masculina é um Aricobé
Cuja filha Cobé, cum branco Paí
Dormiu no promontório de Passé.

O branco é um marau, que veio aqui;
Ela é uma índia de Maré
Cobépá, Aricobé, Cobé, Paí.

******************************************************************************





Poemas de Gregório de Matos II

PONDERA AGORA COM MAIS ATTENÇÃO A
FORMOSURA DE D. ANGELA.

Não vi em minha vida a formosura,
Ouvia falar nela cada dia,
E ouvida me incitava, e me movia
A querer ver tão bela arquitetura.
Ontem a vi por minha desventura
Na cara, no bom ar, na galhardia
De uma Mulher, que em Anjo se mentia,
De um Sol, que se trajava em criatura.

Me matem (disse então vendo abrasar-me)
Se esta a cousa não é, que encarecer-me.
Sabia o mundo, e tanto exagerar-me.

Olhos meus (disse então por defender-me)
Se a beleza hei de ver para matar-me,
Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me.

***********************************************************************

À SUA MULHER ANTES DE CASAR

Discreta, e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Em teus olhos, e boca o Sol, e o dia:

Enquanto com gentil descortesia
O ar, que fresco Adônis te namora,
Te espalha a rica trança voadora,
Quando vem passear-te pela fria:

Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza,
E imprime em toda a flor sua pisada.

Oh, não aguardes, que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza
Em terra, em cinza, em pó, em sobra, em nada.

*****************************************************************************

Aos afetos, e lágrimas, derramadas na ausência da dama a quem queria bem.

Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:

Tu, que um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido.

Se és fogo, como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.

*********************************************************************

AO MESMO ASSUNTO E NA MESMA OCASIÃO.

Corrente, que do peito desatada

Sois por dois belos olhos despedida,

E por carmim correndo desmedida

Deixais o ser, levais a cor mudada.

Não sei, quando caís precipitada

As flores, que regais, tão parecida,

Se sois neves por rosa derretida,

Ou se a rosa por neve desfolhada.

Essa enchente gentil de prata fina,

Que de rubi por conchas se dilata,

Faz troca tão diversa, e peregrina,

Que no objeto, que mostra, e que retrata,

Mesclando a cor purpúrea, e cristalina,

Não sei, quando é rubi, ou quando é prata.

*************************************************************
DESCREVE O LABIRINTO CONFUSO DE SUAS DESCONFIANÇAS

Ó caos confuso, labirinto horrendo
Onde não topo luz, nem fio amando
Lugar de glória, aonde estou penando,
Casa da morte, aonde estou vivendo!
...
Ó voz sem distinção, Babel tremendo
Pesada fantesia, sono brando,
Onde o mesmo, que toco, estou sonhando
Onde o próprio, que escuto, não entendo!
...
Sempre és certeza, nunca desengano
E a ambas propensões, com igualdade
No bem te não penetro, nem no dano.
...
És ciúmes martírio da vontade,
Verdadeiro tormento para engano,
E cega presunção para a verdade.







Poemas de Gregório de Matos I

Custódia

Ai, Custódia! sonhei, não sei se o diga:
Sonhei, que entre meus braços vos gozava.
Oh se verdade fosse, o que sonhava!
Mas não permite Amor, que eu tal consiga.

O que anda no cuidado, e dá fadiga,
Entre sonhos Amor representava
No teatro da noite, que apartava
A alma dos sentidos, doce liga.

Acordei eu, feito sentinela
De toda a cama, pus-me uma peçonha,
Vendo-me só sem vós, e em tal mazela.

E disse, porque o caso me envergonha,
Trabalho tem, quem ama, e se desvela,
E muito mais quem dorme, e em falso sonha.

*****************************************************************************

Admirável Expressão que Faz o Poeta de seu Atencioso Silêncio

Largo em sentir, em respirar sucinto,
Peno, e calo, tão fino, e tão atento,
Que fazendo disfarce do tormento,
Mostro que o não padeço, e sei que o sinto.

O mal, que fora encubro, ou que desminto,
Dentro no coração é que o sustento:
Com que, para penar é sentimento,
Para não se entender é labirinto.

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;
Da tempestade é o estrondoso efeito:
Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.

Mas oh do meu segredo alto conceito!
Pois não me chegam a vir à boca os tiros
Dos combates que vão dentro no peito.

*******************************************************************************


Pintura admirável de uma beleza



Vês esse Sol de luzes coroado?
Em pérolas a Aurora convertida?
Vês a Lua de estrelas guarnecida?
Vês o Céu de Planetas adorado?

O Céu deixemos; vês naquele prado
A Rosa com razão desvanecida?
A Açucena por alva presumida?
O Cravo por galã lisonjeado?

Deixa o prado; vem cá, minha adorada,
Vês de esse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?

Parece aos olhos ser de prata fina?
Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Caterina.

***********************************************************************************


A D. ÂNGELA

Anjo no nome, Angélica na cara,
Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu custódio, e minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.

***********************************************************************************













Barroco: o cultismo e o conceptismo

Definições:

Cultismo - é um abuso ou artifício da fantasia no campo psicológico da representação sensível, perceptível, cujo maior representante desta tendência no Brasil é Gregório de Matos.

Conceptismo - é um abuso ou requinte da fantasia nos domínios próprios do entendimento, do pensar formal.

  • Cultismo: é caracterizado pela linguagem rebuscada, culta, extravagante; pela valorização do pormenor mediante jogos de palavras, com visível influência do poeta espanhol Luís de Gôngora; daí o estilo ser também conhecido como Gongorismo.
  • O aspecto exterior imediatamente visível no Cultismo ou Gongorismo é o abuso no emprego de figuras de linguagem como as metáforas, antítese, hipérboles, hipérbatos, anáforas, paronomásias, etc...

    "O todo sem a parte não é o todo;

    A parte sem o todo não é parte;

    Mas se a parte o faz todo, sendo parte,

    Não se diga que é parte, sendo o todo.

    Em todo o Sacramento está Deus todo,

    E todo assiste inteiro em qualquer parte,

    E feito em partes todo em toda a parte,

    Em qualquer parte sempre fica todo."

    (Gregório de Matos)

  • Conceptismo: é marcado pelo jogo de idéias, de conceitos, seguindo um raciocínio lógico, racionalista, que utiliza uma retórica aprimorada. Um dos principais cultores do conceptismo foi o espanhol Quevedo, de onde deriva o termo Quevedismo. Os Conceptistas pesquisavam a essência íntima dos objetos, buscando saber o que são, visando à apreensão da face oculta, apenas acessível ao pensamento, ou seja, ao conceitos; assim a inteligência, a lógica e o raciocínio ocupam o lugar dos sentidos, impondo a concisão e a ordem, onde reinavam a exuberância e o exagero. Assim, é usual a presença de elementos da lógica formal, como:

A – O SILOGISMO: Dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas se tira uma terceira, nelas logicamente implicada, chamada conclusão. Assim, temos como exemplo: Todo homem é mortal (premissa maior); ora, eu sou homem (premissa menor); logo, eu sou mortal (conclusão).

Observe a construção dos tercetos finais de um soneto sacro de Gregório de Matos que, referindo-se ao amor de Cristo diz:

    "Mui grande é o vosso amor e o meu delito;

    Porém pode ter fim todo o pecar,

    E não o vosso amor, que é infinito.

    Essa razão me obriga a confiar

    Que, por mais que pequei, neste conflito

    Espero em vosso amor de me salvar."

Estes versos encobrem a formulação silogística, como segue:

  • Premissa maior: O amor infinito de Cristo salva o pecador.
  • Premissa menor: Eu sou um pecador.
  • Conclusão: Logo, eu espero salvar-me.

B – O SOFISMA: É o argumento que parte de premissas verdadeiras e que chega a uma conclusão inadmissível, que não pode enganar ninguém, mas que se apresenta como resultante de regras formais do raciocínio, não podendo ser refutado. É um raciocínio falso, elaborado com a função de enganar.

Ex.: Muitas nações são capazes de governarem-se por si mesmas; as nações capazes de governarem-se por si mesma não devem submeter-se às leis de um governo despótico. Logo, nenhuma nação deve submeter-se às leis de um governo despótico.

Cultismo e Conceptismo são dois aspectos do Barroco que não se separam; antes, superpõem-se como as duas faces de uma mesma moeda. Às vezes, o autor trabalha ao nível de palavra, da imagem; busca mais argumento, o conceito. Nada impede que o mesmo texto tenha, simultaneamente, aspectos Cultistas e Conceptistas. Com os riscos inerentes às generalizações abusivas, diz-se, didaticamente, que o Cultismo é predominante na poesia e o Conceptismo, predominante na prosa.