segunda-feira, 15 de junho de 2009

Iracema - José de AlencarIracema de José de Alencar Roda de Teto (Maruana) dos índios Wayana e Apalaí por Frederico Barbosa e Sylmara Beletti

Iracema
de José de Alencar
Roda de Teto (Maruana) dos índios Wayana e Apalaí
por
Frederico Barbosa
e
Sylmara Beletti



INTRODUÇÃO

Um dos mais belos romances da nossa literatura romântica, Iracema é considerado por muitos “um poema em prosa”. A trágica história da bela índia apaixonada pelo guerreiro branco é contada por José de Alencar com o ritmo e a força de imagens próprios da poesia.
Em Iracema, José de Alencar construiu uma alegoria perfeita do processo de colonização do Brasil e de toda a América pelos invasores portugueses e europeus em geral. O nome Iracema é uma anagrama da palavra América. O nome de seu amado Martim remete ao deus greco-romano Marte, o deus da guerra e da destruição.
O autor demonstra, já a partir do título, um evidente trabalho de construção de uma linguagem e de um estilo que possam melhor representar, para o leitor, “a singeleza primitiva da língua bárbara”, com “termos e frases que pareçam naturais na boca do selvagem”.
O livro foi publicado em 1865 e, em pouco tempo, agradou tanto aos leitores quanto aos críticos literários, a começar pelo jovem Machado de Assis, então com 27 anos, que escreveu sobre Iracema no Diário do Rio de Janeiro, em 1866:
“Tal é o livro do Sr. José de Alencar, fruto do estudo e da meditação, escrito com sentimento e consciência… Há de viver este livro, tem em si as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro…Espera-se dele outros poemas em prosa. Poema lhe chamamos a este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima.”


A LENDA E A HISTÓRIA

O livro, subtitulado Lenda do Ceará, conta a triste história de amor entre a índia tabajara Iracema, a virgem dos lábios de mel e Martim, primeiro colonizador português do Ceará. Além disso, como resume Machado de Assis, o assunto do livro é também a história da fundação do Ceará e o ódio de duas nações inimigas (tabajaras e pitiguaras). Os pitiguaras habitavam o litoral cearense e eram amigos dos portugueses. Os tabajaras viviam no interior e eram aliados dos franceses.
José de Alencar recorreu a circunstâncias históricas, como a rixa entre os índios tabajaras e pitiguaras e utilizou personagens reais, como Martim Soares Moreno e o índio Poti, que depois viria a adotar o nome cristão de Antônio Felipe Camarão. Mas cercou-os de uma fértil imaginação e de um lirismo próprios da poesia romântica.

A heroína idealizada

Iracema é filha de Araquém, pajé da tribo tabajara, e deve manter-se virgem porque “guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã”. Um dia, Iracema encontra, na floresta, Martim, que se perdera de Poti, amigo e guerreiro pitiguara com quem havia saído para caçar e agora andava errante pelo território dos inimigos tabajaras. Iracema leva Martim para a cabana de Araquém, que abriga o estrangeiro: para os indígenas, o hóspede é sagrado.
O momento em que Martim encontra Iracema revela a idealização romântica em seu grau mais elevado:

“Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.
Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá , as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.”

Note-se que o narrador seguidas vezes compara Iracema à natureza exuberante do Brasil. E a virgem leva sempre vantagem. Seus cabelos são mais negros e mais longos, seu sorriso mais doce, seu hálito mais perfumado, seus pés mais rápidos.
Iracema é apresentada por um narrador que, embora se apresente na terceira pessoa, é claramente emotivo e apaixonado. Retrata-a, portanto, como a síntese perfeita das maravilhas da natureza cearense, brasileira e americana. Iracema é muito mais do que uma mulher. Não anda, flutua. Toda a natureza rende-lhe homenagem: da acácia silvestre aos pássaros, como o sabiá e a ará. A heroína é o próprio espírito harmonioso da floresta virgem.

A harmonia rompida

O narrador deixa clara a ruptura nesse harmoniosa relação de Iracema com o seu meio ao apresentar o surgimento de Martim: "Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta". A vista de Iracema perturba-se, impossibilitada de decodificar essa estranha aparição de uma etnia que lhe é desconhecida.
José de Alencar retrata, assim, o processo de estranhamento e fascínio mútuo que dominou o encontro dos dois povos. Começavam a se conhecer, sem sequer suspeitar as trágicas conseqüências do encontro para os indígenas.

A sedução

Enquanto esperam a volta de Caubi, o irmão de Iracema que reconduziria o guerreiro branco às terras pitiguaras, Iracema se apaixona por Martim, mas não pode se entregar a ele, porque, como afirma o Pajé, “se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela morrerá…” Uma noite, Martim pede à Iracema o vinho de Tupã, já que não está conseguindo resistir aos encantos da virgem. O vinho, que provoca alucinações, permitiria que ele, em sua imaginação, possuísse a jovem índia como se fosse realidade. Iracema lhe dá a bebida e, enquanto ele imagina estar sonhando, Iracema “torna-se sua esposa”.
É muito importante notar o valor alegórico dessa passagem. Ao “possuir” Iracema, Martim está inconsciente, completamente seduzido e inebriado. Esse gesto há de provocar a destruição da virgem, assim como a invasão do Brasil pelos portugueses há de provocar a destruição da floresta virgem americana. No entanto, assim como Martim não tinha qualquer intenção de provocar a morte de sua amada – o faz por paixão – os destruidores da natureza brasileira o fizeram de forma inconsciente e inconseqüente. A consciência ecológica de Alencar vai muito além da ingênua defesa das nossas matas: percebe com clareza o seu processo de destruição.

O conflito

Índios Bororo de São Lourenço - 1914 - Foto: Major Luiz Thomaz Reis

Martim é ameaçado pelo enciumado chefe guerreiro Irapuã, que quer invadir a cabana de Araquém e matá-lo. Apesar da advertência de Araquém de que Tupã puniria quem machucasse seu hóspede, os guerreiros de Irapuã cercam a cabana, que é protegida por Caubi.
Iracema encontra Poti, que está próximo à aldeia dos tabajaras e deseja salvar o amigo. Planejam, então, a fuga de Martim. Durante a preparação dos guerreiros tabajaras para a guerra com os pitiguaras, Iracema lhes serve o vinho da jurema e, enquanto os guerreiros deliram, ela leva Martim e Poti para longe da aldeia. Quando já estão em terras pitiguaras, Iracema revela a Martim que ela agora é sua esposa e deve acompanhá-lo. Entretanto, os tabajaras descobrem que Iracema traíra “o segredo da jurema” e perseguem os fugitivos. Os pitiguaras, avisados da invasão dos tabajaras, juntam-se aos fugitivos e é travado um sangrento combate. Iracema luta ao lado de Martim contra a sua tribo.Os pitiguaras ganham a luta e Iracema se entristece pela morte dos seus irmãos tabajaras.

O exílio

Iracema acompanha Martim e Poti e passa a morar com eles no litoral. Durante algum tempo, eles são muito felizes, e a alegria se completa com a gravidez de Iracema. Porém, Martim acaba por “saturar-se de felicidade” e seu interesse pela esposa e pela vida ao seu lado começa a esfriar. Iracema se ressente da frieza do marido e sofre. Martim se ausenta com freqüência em caçadas e batalhas contra os inimigos dos pitiguaras. Enquanto guerreia, nasce seu filho, que Iracema chama de Moacir, que significa “nascido do meu sofrimento, da minha dor”.
Iracema dá ao filho o nome indígena correspondente ao nome hebraico Benoni, que também significa “filho de minha dor”. Este é o nome dado por Raquel, mulher do patriarca bíblico Jacó, ao seu último filho. Raquel morre depois de dar à luz. Mas Jacó muda o nome do menino para Benjamim. Os filhos de Jacó dão origem às tribos que formarão a nação Israel, assim como o filho de Iracema representa o início de uma nação.
Solitária e saudosa, Iracema tem dificuldade para amamentar o filho e quase não come. Desfalece de tristeza. Martim fica longe de Iracema durante oito luas (oito meses) e, quando volta, encontra Iracema à beira da morte. Ela entrega o filho a Martim, deita-se na rede e morre, consumida pela dor. Poti e Martim enterram-na ao pé do coqueiro, à beira do rio. Segundo Poti: “quando o vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos.
O lugar onde viveram e o rio em que nascera o coqueiro vieram a ser chamados, um dia, pelo nome de Ceará.
Martim partiu das praias do Ceará levando o filho. Alencar comenta: “O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?
O guerreiro branco volta alguns anos depois, acompanhado de outros brancos, inclusive um sacerdote “para plantar a cruz na terra selvagem”. Começa a colonização e a narrativa termina: “Tudo passa sobre a terra.

O NARRADOR

O romance é narrado na terceira pessoa, mas o narrador está longe de se manter neutro e mero observador. Abundam os adjetivos reveladores de admiração, principalmente em referência à natureza brasileira e à Iracema. Em alguns momentos o narrador arrebatado chega a revelar-se na primeira pessoa: “O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu.
Tais arroubos justificam-se pela colocação, no início da obra, de que essa é "uma história que me contaram nas lindas vargem onde nasci". Assim, Alencar justifica a intromissão da voz na primeira pessoa em uma obra narrada na terceira.

O INDIANISMO

O índio começou a ser adotado como tema literário no Brasil pelos árcades, principalmente Basílio da Gama – que via o índio como “homem natural”, e Santa Rita Durão – para quem o índio era apenas o “comedor de carne humana, que só o Cristianismo salvaria”.

A busca de uma “poesia americana”

Já no Romantismo, o culto do passado e o nacionalismo literário permitiram aos escritores cultivarem a chamada “poesia americana”, que se valia da natureza, da História, de cenas e de costumes nacionais, fórmula em que o Indianismo se adequava perfeitamente.
Os escritores mais expressivos do Indianismo, nesse período, foram, na poesia, Gonçalves Dias, com poemas como I-Juca Pirama, Marabá e Leito de Folhas Verdes e, na prosa, José de Alencar, com romances como O Guarani, Iracema e Ubirajara.
A corrente indianista foi muito prestigiada e vários poetas tentaram escrever o “poema americano” por excelência, como Gonçalves de Magalhães com o seu poema longo A Confederação dos Tamoios, que originou uma célebre polêmica, em que até o Imperador participou.

A polêmica

Alencar foi o protagonista, em 1856, dessa polêmica acalorada sobre o papel do índio na literatura brasileira. O introdutor do romantismo entre nós, o poeta Gonçalves de Magalhães, acabara de publicar um poema épico com temática indianista. Amigo do imperador Dom Pedro II, Magalhães era, de certa forma, o “poeta oficial” do Brasil naquele momento.
Em uma série de cartas assinadas com o pseudônimo de Ig., Alencar critica o artificialismo do tratamento do índio dado por Gonçalves de Magalhães que, segundo ele, “não está à altura do assunto”.
Saem, em defesa do poeta, vários amigos seus, entre eles o próprio imperador Dom Pedro II. A polêmica se desdobra do início de junho ao final de outubro de 1856.
Podemos mesmo perceber, em alguns pontos das cartas, que Alencar já pensava em abordar a temática nos seus futuros escritos, associando-a ao elogio da terra brasileira:

“Digo-o por mim: se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e suas belezas, se quisesse compor um poema nacional, pediria a Deus que me fizesse esquecer por um momento as minhas idéias de homem civilizado. Filho da natureza, embrenhar-me-ia por essas matas seculares; contemplaria as maravilhas de Deus, veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a lua deslizar-se no azul do céu; ouviria o murmúrio das ondas e o eco profundo e solene das florestas.”

Mas não seria através da poesia que Alencar haveria de “cantar a minha terra e suas belezas”. Ainda na polêmica sobre A Confederação dos Tamoios, ele critica o uso de gêneros poéticos clássicos para descrever o índio brasileiro:

“Escreveríamos um poema, mas não um poema épico; um verdadeiro poema nacional, onde tudo fosse novo, desde o pensamento até a forma, desde a imagem até o verso. A forma com que Homero cantou os gregos não serve para cantar os índios; o verso que disse as desgraças de Tróia e os combates mitológicos não pode exprimir as tristes endeixas do Guanabara, e as tradições selvagens da América. Por ventura não haverá no caos incriado do pensamento humano uma nova forma de poesia, um novo metro de verso?”

Desde as primeiras páginas de Iracema, fica claro que o seu autor procura colocar essas idéias em prática. Alencar adota o gênero do romance, mas o faz com um cuidado na construção das imagens e com a musicalidade da linguagem que levaram críticos como Machado de Assis a considerá-lo mais um “poema em prosa” do que propriamente um romance. E levaram Haroldo de Campos a afirmar que: “O maior poeta indianista (o único plenamente legível hoje…) foi um prosador: José de Alencar.” Seguindo a trilha aberta por Augusto Meyer, que já havia observado: “Bastaria Iracema para consagrá-lo o maior criador da prosa romântica, na língua portuguesa, e o maior poeta indianista.”

Desdobramentos

No parnasianismo, o índio aparece raramente – um exemplo é o poema A Morte de Tapir, de Olavo Bilac – e simplesmente desaparece na poesia simbolista.
O Modernismo volta ao tema e o utiliza às vezes como ponto de referência para diretrizes estéticas, como no caso da Poesia “Pau-Brasil” e da Antropofagia de Oswald de Andrade, com a questão “tupi or not tupi”. Algumas obras aproveitaram o tema do índio e suas lendas, como Macunaíma, de Mário de Andrade, Cobra Norato de Raul Bopp ou Martim Cererê, de Cassiano Ricardo.

Iracema e Macunaíma

O crítico Cavalcanti Proença demonstrou no Roteiro de Macunaíma as diversas relações de semelhança entre Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e Iracema. Entre essas destacam-se as semelhanças entre as personagens de Iracema e de Ci, a mãe do mato:

"Ci aromava tanto que Macunaíma tinha tonteiras de moleza" (M.A.) -- "Todas as noites a esposa perfumava seu corpo e a alva rede, para que o amor do guerreiro se deleitasse nela (J. A.). É a rede de cabelos que torna a Mãe do Mato inesquecível, e é uma rede que Iracema oferece ao guerreiro branco: -- "Guerreiro que levas o sono de meus olhos, leva a minha rede também. Quando nela dormires, falem em tua alma os sonhos de Iracema" (J.A.)
Ambas …não têm leite. O de Ci foi a cobra preta que sugou; em Iracema o leite não chegava ao seio, diluído nas lágrimas de saudade. "A jovem mãe suspendeu o filho à teta; mas a boca infantil não emudeceu. O leite escasso não apojava o peito" (J. A.). Em Macunaíma, o filho do herói "chupou o peito da mãe no outro dia, chupou mais, deu um suspiro envenenado e morreu".

IRACEMA VOANDO HOJE

A permanência de Iracema no universo cultural brasileiro é incontestável. Uma das manifestações artísticas que perpetuam a imagem da virgem dos lábios de mel, mesmo que nem sempre tão virgem ou idealizada, é a música popular brasileira contemporânea.
Vejamos dois exemplos de compositores populares que recorrem à imagem alencariana para compor suas canções:

Chico Buarque de Holanda
Iracema voou
Chico Buarque/1998
                Iracema voou
                Para a América
                Leva roupa de lã
                E anda lépida
                Vê um filme de quando em vez
                Não domina o idioma inglês
                Lava chão numa casa de chá

                Tem saído ao luar
                Com um mímico
                Ambiciona estudar
                Canto lírico
                Não dá mole pra polícia
                Se puder, vai ficando por lá
                Tem saudade do Ceará
                Mas não muita
                Uns dias, afoita
                Me liga a cobrar:
                -- É Iracema da América

Nessa canção, Chico Buarque de Holanda atualiza a lenda do Ceará, apresentando Iracema como uma emigrante que vai para a América (lembrando o anagrama de Alencar), seguindo assim, a sina do primeiro cearense, Moacir.
Já Eduardo Dusek e Luiz Carlos Góes, na canção abaixo, vão desmontar a figura idealizada de Alencar, transportando a índia para o mundo atual, em que prevalecem a corrupção e a marginalidade nada românticas.

A índia e o traficante
Eduardo Dusek / Luiz Carlos Góes /1986
            Noite malandra, um luar de espelho,
            No meio da terra a índia colhe o brilho,
            Som de suor, cheirada musical,
            Palmeira que se verga em meio ao vendaval.
            Sentia macia floresta,
            Bolívia, montanha, seresta...

            Índia guajira já colheu sua noite
            Volta para a tribo meio injuriada,
            Uma figueira numa encruzilhada
            Felina, um olho de paixão danada,
            Era Leão, famoso traficante,
            Um outdoor, bandido elegante,
            Que a levou para um apart-hotel
            Que tem em Cuiabá.

            Índia, na estrada, largou a tribo
            Comprou um vestido, aprendeu a atirar,
            Índia virada, alucinada pelo cara-pálida do Pantanal,
            Índia guajira e o traficante
            Loucos de amor, trocavam o seu mel,
            Era um amor tipo 45,
            E tiroteios rasgando o vestido,
            Em quartos de motel.

            Explode o amor, adiós para o pudor,
            Guajira e o traficante passam a escancarar,
            Rolam papéis, nos bares, nos bordéis,
            Os dois de Bonnie and Clyde, assunto dos cordéis,
            Maíra, pivete, amazônia,
            Esqueceu Tupã, a sem-vergonha...

            Dentro de um Cessna, bebendo champagne
            Leão e seu bando a fazem sua chefona,
            Índia fichada, retrata falada,
            A loto esperada pelos federais,
            Mas ela gosta de fotografia
            E vira capa dos jornais do dia,
            Enquanto espera uma tonelada da pura alegria.

            Índia, sujeira, foi dedurada
            Por um sertanista que era amigo seu,
            Índia traída – “mim tô passada” –
            Ela lamentava num mal português,
            A Índia, deu um ganho, num Landau negro,
            Chapa oficial, que era da Funai,
            Passou batido pela fronteira,
            Uma rajada de metralhadora...
            Morta no Paraguai!



Vida e Obra
de José de Alencar

Alma brasileira

José de Alencar nasceu em 1829, apenas sete anos depois da Independência do Brasil, em Mecejana, no Ceará. Filho de um ex-padre, que se tornou presidente da Província do Ceará e Senador do Império, o jovem Alencar se transfere, com a família, aos nove anos de idade para a cidade do Rio de Janeiro. Em 1844, aos quinze anos, matricula-se nos cursos preparatórios à Faculdade de Direito de São Paulo. Lê, então, o recém publicado romance A Moreninha, cujo sucesso em muito há de influenciá-lo na decisão posterior de se tornar romancista.
Em São Paulo, Alencar cursa os primeiros anos da Faculdade de Direito e começa a publicar seus primeiros textos em algumas revistas estudantis. Transfere-se, em 1848, para a Faculdade de Direito de Olinda, em Pernambuco. Em Olinda, na velha biblioteca do Mosteiro de São Bento, encontra a literatura dos antigos cronistas coloniais, como Gabriel Soares de Sousa e Pero Magalhães Gandavo.
Anos mais tarde, Alencar ainda se recorda da emoção que foi a descoberta desses autores do século XVI, que nos dão as primeiras impressões dos europeus ao encontrarem a natureza e o índio do Brasil, em cujas páginas já procurava um tema para desenvolver em sua própria literatura:

“Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-se com o primeiro broto do Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um tema para o meu romance; ou pelo menos um protagonista, uma cena e uma época.”

Voltando a São Paulo, após contrair tuberculose, forma-se em Direito no final de 1850. No ano seguinte, retorna à capital do país e lá começa a advogar. Não se esquece, porém, da literatura. Em 1854, começa a escrever uma seção diária no Correio Mercantil, intitulada Ao Correr da Pena, em que comenta os mais variados assuntos da vida do Rio de Janeiro e do país. Esses textos leves de temática cotidiana podem ser considerados os precursores da crônica moderna, em que se haveriam de destacar, no século seguinte, escritores como Rubem Braga, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade.
Em 1855, Alencar é um dos fundadores do jornal O Diário do Rio de Janeiro, do qual é editor-chefe. É através desse jornal que vai publicar os textos que, logo, o tornarão conhecido em todo o país. No final do ano de 1856, Alencar decide publicar um folhetim como “brinde” aos leitores do jornal. Inicia, assim, sua carreira de romancista. Publica o curto romance Cinco Minutos, que é recebido por seus leitores com grande simpatia. Estimulado pelo sucesso do primeiro, logo começa a publicar um segundo romance, A Viuvinha, cuja publicação interrompe quando, por engano, um companheiro seu publica o final da história na Revista de Domingo. Inicia, então, a publicação de O Guarani. Surge, assim, na literatura nacional, uma nova “estrela colorida brilhante” – lembrando as palavras de Caetano Veloso na canção Um Índio. Uma estrela que há de escrever, “numa velocidade estonteante”, os capítulos do romance do qual descerá um índio “mais avançado que a mais avançada das mais avançada das tecnologias” - o apaixonado Peri.
Entre 1857 e 1870, além de publicar diversos romances, entre eles Lucíola (1862) e Iracema (1865), Alencar foi eleito várias vezes deputado, Ministro da Justiça entre 1868 e 1870, e dedicou-se também ao teatro, escrevendo O Demônio Familiar (1857), As Asas de um Anjo (1858) e A Mãe (1860), entre outras peças. Em 1870, abandona a política, ressentido, após ser preterido para a vaga de Senador.
Inicia, então, uma fase de recolhimento: poucos amigos e nenhum sorriso. Sua produção novelística é intensificada, agora norteada pelo projeto de descrição do Brasil, anunciado no prefácio do livro Sonhos d'Ouro (1872). Em 1875, publica Senhora, um de seus romances mais complexos. Ao morrer, em 1877, Alencar era considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Principalmente por Machado de Assis, seu amigo e mais fiel admirador, e que logo o destronaria. Para Machado: “Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira.”
O próprio Alencar aponta que seus romances se encaixam em um projeto de descrição global do Brasil. Divide-os em quatro tipos:

  • Romance urbano, como Lucíola e Senhora.
  • Romance regionalista, como O Gaúcho e O Sertanejo.
  • Romance indianista, como Iracema e Ubirajara.
  • Romance histórico, como O Guarani e As Minas de Prata.
A crítica posterior haveria de relativizar esta classificação. Tanto Iracema quanto O Guarani são considerados ao mesmo tempo históricos e indianistas.

Leia online a edição integral de Iracema:








Sonhos D'Ouro - José de Alencar

Esta é a versão em html do arquivo http://www.anpuh.uepg.br/xxiii-simposio/anais/textos/VALDECI%20REZENDE%20BORGES.pdf.
G o o g l e cria automaticamente versões em texto de documentos à medida que vasculha a web.
Page 1
A NATUREZA NO SONHO ROMÂNTICO DE INVENÇÃO DE UMA IDENTIDADE DA
NAÇÃO
Valdeci Rezende Borges(UFG/CAC/NIESC)
José de Alencar, em Sonhos D’Ouro, de 1872, tratou de questões que permeavam o
debate cultural da sociedade imperial, como a construção da identidade da jovem nação
brasileira. O romance formaliza a proposta teórica apresentada no prefácio, “Benção
Paterna”, em que se discutem os vínculos entre literatura e experiências socioculturais,
elementos nativos e estrangeiros. A trama centra-se na sociedade da Corte, receptiva a
“elementos diversos” de outras nações, os quais cambiavam a “cor local”, tornando sua
“fisionomia indecisa, vaga e múltipla”, devido à “importação contínua de idéias e costumes
estranhos”. O território dos arredores das serranias da Tijuca predomina como cenário e
aspecto constituinte do romance. Busca-se, aqui, perceber, nas descrições da natureza
fluminense, a edificação de um imaginário formador de uma identidade do lugar e da nação,
destacando suas singularidades, belezas e monumentalidade.
O livro abre-se anunciando as belezas da natureza carioca com a frase “O sol
ardente de fevereiro dourava as lindas serranias da Tijuca”. Em passeios aos pontos de
visitação da montanha ou na residência de veraneio de Guida, a Tijuca ocupa lugar
privilegiado na trama. Na montanha, natureza e sociedade interagem e articulam-se, no
entanto a segunda teve ressaltado seu lado negativo. A flor que brotava na primeira e a
simbolizava, como forma de existência pré-capitalista, foi descrita como originária de uma
“natureza lerda, que ainda cria pelo antigo sistema, com o sol e a chuva”. Mas ela remete
ainda ao que a sociedade moderna, “que tudo aferventa a vapor” e “tudo reduz a uma
pequena operação química”, elegeu como símbolo para tudo mediar, o ouro, o dinheiro. Na
natureza vagarosa, a “pequena flor silvestre” tinha botões que despontavam em dezembro,
conservava estacionários “por muito tempo” e, só dois ou três meses depois,
desabrochavam e murchavam num dia.
1
Já a sociedade era lugar do corrido e da corrida ao ouro, em que de porqueiro
enriquecido torna-se banqueiro e Comendador; de tropeiro de muares, Barão...; em que
flores e aves eram associadas a nascimentos em estufa, resultando de “operação química,
por meio da qual suprime-se o tempo, e obriga-se a criação a pular, como qualquer
acrobata.” A flor cor de ouro, de ciclo de floração submetido ao ritmo lento da natureza,
simbolizava o estado contrastante e ambivalente das coisas. Ela aparece depois de
anunciada a preocupação com a nacionalidade original, delimitada pelos perfumes das
ervas rescendentes do canteiro da casa, como a baunilha e o sassafrás, e por uma
linguagem brasileira vinda da fala de um povo que chupa caju, manga, cambucá... Ela opõe-
se às “flores de estufa” e ao artificicialismo americano, “que inventou uma máquina de
chocar ovos”, oposta às capoeiras da Tijuca, cheias de galinhas e frangos criados livres.
O autor, de início, tece um painel das “lindas serranias da Tijuca”, descrevendo seus
elementos e belezas. É espaço banhado pelo dourado do sol do verão tropical, de “formosas
manhãs” de céu arreado “do mais puro azul”, de “verde relva e da folhagem” coberta de
orvalho, que cambiava “aos toques da luz” por entre os “frocos de névoa” que restavam “da
cerração da noite” e “cingiam ainda os píncaros mais altos da montanha”, flutuantes “ao
sopro da brisa”. Nesse cenário paradisíaco, insere Ricardo, “um passeador solitário”, que
conhecia os muitos caminhos que cruzavam a encosta ocidental da montanha e rumava
mato adentro, observando as belezas, peculiaridades e ocupações da montanha.
Seu olhar desvelava a natureza do lugar, já perscrutada pela ciência. Sua presença
reporta à ação das expedições científicas custeadas pelo governo imperial para observar,
descrever, classificar, rotular, batizar e mostrar a monumentalidade da natureza brasileira.
Frente ao entrecruzamento dos campos culturais, fez trocadilho, como o nome de “dois
célebres botânicos”, estudiosos “ilustres da flora brasileira”, chamando-os freires, por tratar
de Frei José Mariano Conceição Veloso, botânico, autor de Flora Fluminensis, e de
Francisco Freire Alemão, médico e botânico. Havia certa proximidade da ciência e da arte
ao apreender a natureza, mas os procedimentos diferiam. Uma dissecava as partes da
planta e elaborava classificações, de gênero, classe e família; a outra “revelava o tato do
2
artista ou do poeta” romântico, vendo-a como ser vivo que possuía coração e copiava “o
arbusto em uma das páginas do álbum”, traçando “a lápis o esboço da planta.”
As representações da serra opõem natureza/civilização, registram o pitoresco da
paisagem e indicam o interesse de estabelecer uma identidade do lugar ressaltando a
beleza dos aspectos naturais como a vegetação, o relevo e a hidrografia. A Cascatinha fazia
as preocupações do visitante “se desvaneceram completamente diante do quadro
arrebatador que se oferecera a seus olhos”. Sua queda foi associada ao manto, bíblico, de
Agar e contraposta a outras cascatas, destacando sua especificidade, sua característica
feminina e indicando-a como ponto de visitação de estrangeiros e da alta sociedade.
A visão da natureza, permeada pela subjetividade romântica, foi expressa na sua
descrição, expondo sentimentos e sensações experimentados em seu contato. Para
abarcar tal espetáculo natural, lançava-se mão da palavra, do desenho e da pintura, como
tentativas de garantir a memória, de expressar, guardar e transmitir as impressões
vivenciadas. A queda d’água aparece como objeto de contemplação e de produção artística,
como “uma aquarela da formosa paisagem”, que Ricardo “já possuía em seu álbum” e de
“outra vista” que planejava tirar, pois “nunca a vira tão abundante de água, tão enfeitada e
casquilha”. Assim, ele “teria a Cascatinha em traje de festa e em desalinho.” A inglesa Mrs.
Trowshy, ao vê-la exclamou: “_ Oh! beautiful! Very beautiful!
Daí, podia-se dirigir à “Floresta, ou mais acima ao pico da montanha que tem a forma
e o nome de Bico do Papagaio.” Já “descendo o caminho da Cascatinha”, era possível
passear “na bela estrada” que ia ao Jardim Botânico. Eram vários os passeios como à Vista
Chinesa, à Vista do Mar, à Mesa, à Cascata Grande, à Barra, à Boa Vista, à Restinga, à
Pedra Bonita, ao Canto da Saudade e ao Bico do Papagaio. Por estradas e trilhos, que
compunham uma rede de caminhos, encontravam-se comitivas de “diversas pessoas,
senhoras e homens, que iam de passeio, rindo e conversando”, e até mesmo a imaginar
aventuras, como Mrs. Trowshy, que fantasiava ataques dos “salteadores da Tijuca,
chamados quilombolas”, que “furtavam bananas, galinhas e outras cousas leves...”
3
A paisagem oferecia a um artista, como um pintor, ou quem, nas horas de lazer,
gostava de desenhar, rica matéria para produção. Um pintor, com seu álbum de desenho,
“percorria os sítios da Tijuca para copiar perspectivas, que mais tarde lhe servissem de
assunto a algum quadro a óleo”. A serra apresentava dois lados distintos da natureza
fluminense, constituindo-se em fonte de imagens. Ao descrevê-los, Alencar posicionou na
polêmica segundo a qual a natureza do Novo Mundo era inferior a do Velho, por ser ainda
adolescente. Concebeu a face de “natureza agreste”, com “aqueles enormes calhaus ou
maciços de rocha, fragmentos da primeira carcaça do globo”, onde “passou a lava em
tempos remotos”.
Afirmando a individualidade da natureza local até os animais entraram na
disputa; contrapôs-se um cavalo estrangeiro, da moda, um racé, a um crioulo dos campos
do sul, que foi enaltecido, junto aos muares paulistas.
Para a banda da “natureza agreste”, podia-se fazer “excursão até a Cascata Grande,
um dos pontos mais freqüentados pelas pessoas que passam o verão na Tijuca”. Porém,
podia-se passar pela Barra e chegar à Restinga. Já, voltando para o lado do mar, ia-se à
Pedra Bonita, que “é uma rocha que se levanta sobre um cabeço de montanha como um
gorro de granito.” Conforme o narrador, “Daí, dessa atalaia das nuvens, goza-se uma vista
soberba sobre o mar, e vê-se de perto o enorme cesto da Gávea, habitualmente cingido de
vapores.” Entre os visitantes do lugar, os ingleses possuíam primazia, eles estavam em
“todos os belos sítios da Tijuca”, sendo “incansáveis exploradores desse belo arrabalde do
Rio de Janeiro.” Sobre sua presença aí, tinha o imaginário social seus registros marcados
pela peripécia diante de sua grandiosidade: “Contam que um inglês aí se perdera, ficando
sobre o gigantesco pedestal de rocha, elevado à condição de estátua, durante três dias,
sem comer nem beber”, pois foi “mais fácil de subir que de descer.” A representação de
figuras humanas minúsculas frente à grandiosidade da natureza foi recorrente na arte
oitocentista, inclusive em Fenimore Cooper, de quem Alencar foi leitor assíduo.
Experimentava-se a ambigüidade de recorrer aos padrões culturais estrangeiros, que
eram apropriados, ao mesmo tempo em que se buscava na natureza local a base para a
construção e afirmação da nacionalidade. Tratando da marcante presença inglesa no
4
conhecimento, lazer e exploração do “belo arrabalde”, Alencar dizia que os ingleses tinha o
“faro do belo e do saudável” e que, chegando ao Rio de Janeiro, volviam “os olhos para
cinta de montanhas que cerca a cidade”, e consideravam “isso um sobrado natural que a
Providência construiu por cima do escritório para alcova de dormir.” Portanto, considerava
que, embora pesasse “ao nosso amor-próprio nacional, eles naturalizaram inglesa, a nossa
Tijuca; fizeram daquela serra onde campearam os Tamoios, uma Escócia brasileira”,
transformando a cultura local dos habitantes primitivos. “O grito dos higlanders percorre as
formosas encostas. Pelas grotas onde reboava primitivamente o brado selvagem da
pocema, ouve-se agora repetido de vale em vale pela voz suave das amazonas o gracioso
la-la-hi-ti.”
Num âmbito mais geral, Alencar apontou a prática dos cientistas ingleses que
exploravam as riquezas botânicas brasileiras e nomeavam seus elementos com nomes
estranhos ao meio e à cultura de origem, como forma de homenagear seus governantes,
como no caso da “flor gigante”, “espécie de loto, que os indígenas chamavam ‘milho-
d’água’”, a “rainha dos lagos, que os ingleses chamaram ‘vitória’, em honra de sua
soberana”, mas que ele chamava “imperatriz, em razão de ser uma majestade brasileira.”
Mas a Tijuca tinha também marcas da presença cultural de outras nacionalidades,
como indica a denominação Vista Chinesa, para o “magnífico cenário” no qual foi construída
“a palhoça onde pousavam os colonos” chineses, “que abriram o caminho do Jardim e
deram nome ao sítio.” Aí ocorriam piqueniques debaixo do “nemoroso bosque dos bambus”,
que guardava, “em hieróglifos e datas”, segredos gravados nos troncos, com garfos e
canivetes, deixados como “lembrança do passeio”. As cenas dos contempladores de
paisagens magníficas sobre um relevo saliente e o expediente de gravar nomes no arvoredo
revelam práticas culturais e o diálogo entre escritores e pintores de várias nacionalidade de
então.
O olhar alencariano, ao procurar definir uma identidade e um lugar para a cidade e
para o Brasil, equiparou a paisagem da Tijuca ao patamar de outras do estrangeiro e elevou
as ações do povo na construção símbolos culturais e do imaginário nacional. Inseriu a
5
imagem da Tijuca num álbum folheado em sala, junto com “lindas vistas da Suiça, da
Escócia, de Sintra...” Tratando das paisagens suiças deslizou para a edificação dos heróis
nacionais, falando de Guilherme Tell, o libertador, que teve sua história feita ópera por
Rossini, e confrontou sua habilidade à dos nativos brasileiros, enaltecendo-os. “A perícia do
alemão nada é à vista da destreza dos selvagens do Brasil”, que “faziam cousas incríveis”,
como furar “os olhos de um pássaro a voar” e flechar “o peixe dentro da água.” Referindo-se
às datas comemorativas, foi contra o 7 de setembro, que bajula os reis, “mas que não honra
a nação” e afeta os “brios nacionais”. Para enaltecer feitos e figuras nacionais em oposição
aos suiços, remeteu primeiro à cidade de Friburgo como “célebre por sua ermida, que um
homem só cavou na rocha viva trabalhando vinte e cinco anos”, narrando, em seguida, que
ouvira “contar um fato análogo, sucedido em Minas”, que “é mais para admirar porque foi um
aleijado dos braços que trabalhava com os pés, e assim construiu uma capela.”
No entanto o ápice de tal processo, que punha em destaque os selvagens brasileiros
e a figura de Aleijadinho como símbolos nacionais, realizou-se ao tratar de “Genebra e o seu
belo lago”, pátria de tantos “personagens ilustres.” Numa “viagem a vôo de pensamento
pelas montanhas da pitoresca Helvécia”, um personagem descreveu “o aspecto dos campos
e bosques durante o inverno, e aquela natureza áspera e desabrida”, lançando outra
questão para o confronto, antes apenas indicada. Alencar não traçou explicitamente o
paralelo das montanhas frias com a ensolarada Tijuca no verão; deixou para o leitor, que, já
imerso no território e ambiente, passou a receber nova bateria de imagens ufanistas desse
sítio.
Para mostrar a monumentalidade, a maravilha e a originalidade dessa natureza, pôs
seus personagens em comitiva rumo à Vista Chinesa. Compunham a “luzida companhia”,
um grupo senhoras que voltava do banho de mar dos lados da Boa Vista e que, depois, foi
visto na estrada do Jardim, “que serpeja pelas encostas da serra da Tijuca, e contornando a
base da montanha desde a Cruz, no Alto da Boa Vista, vai morrer nas praias de
Copacabana”. No percurso, “avistaram os passeantes ao longe a barra da Tijuca, ao longo
da qual estendia-se o cordão de espuma das vagas, como uma franja de armarinho,
6
guarnecendo o manto de cetim do oceano, a embeber o azul do céu.” Olhando a paisagem,
“saudaram com uma exclamação de prazer o quadro encantador daquela marinha, tocada
pelos raios do sol nascente, que aveludava as cores mimosas da palheta americana.” No
Canto da Saudade, “os olhos desafogados do arvoredo que vestia a orla do caminho, se
desdobraram ávidos pelos horizontes abertos, recreando-se com a paisagem de várias
chácaras, derramadas no vale, ou alteadas pelas assomadas das fronteiras colinas”.
Seguindo a comitiva, ao chegar à Vista Chinesa, podia-se “contemplar o esplêndido
cenário que se desdobrava em face” dos visitantes. “Além, na extrema, campindo os
horizontes do soberbo painel, o oceano calmo e sereno que se vinha desdobrar até babujar
com branca orla de espuma as praias de Copacabana e de Marambaia.” Era essa “a tela
onde se estampava com vivo colorido, sobre o campo azul, a magnífica paisagem.” Alencar
contrapôs ainda tais belezas a outras criadas pelo imaginário da literatura universal e que
davam identidade ao oriente, dizendo: “Um jardim encantado, como se desenha à
imaginação, quando lemos aos vinte anos os contos das Mil e uma Noites; um sonho
oriental debuxado em porcelana ou madrepérola; tal era o quadro deslumbrante que
debuxavam aquelas encostas.” Expondo seu olhar, que apreendia a natureza e a inventava
como monumento da cidade e da nação, compunha o quadro o Jardim Botânico, o mar, as
ilhas, a Lagoa, o Corcovado e o Pão de Açucar, a “grande montanha que nos serve de
pedestal.”
Somado a esses elementos de beleza que compunham a paisagem, deu-se
destaque à sua luminosidade; o que “dava a essa perspectiva um aspecto fascinador, era
sobretudo a diáfana limpidez do ar, e uma plenitude da luz que estofava os objetos,
cobrindo-os com uma espécie de áurea expansão [...] uma pubescência, doce e aveludada,
onde se engolfavam os olhos com delícia.” Diante da vista iluminada, “derramaram-se os
passeantes pela borda da esplanada para melhor apreciar os vários pontos da perspectiva,
e cruzaram-se as observações de toda a casta, e as réplicas ou risos que elas provocavam.”
Um, mostrava “o admirável panorama”, imagem do “reino das fadas”; Mrs. Trowshy,
“estatelada diante daquela magnificicência”, exclamava: “_ Fairy!... Fairy!” até que, “no seu
7
entusiasmo”, falou: “_ Look, Sir, how beautiful!” Já outro “parecia enlevado ante a cena
maravilhosa; tal concentração de espírito mostrava sua atitude contemplativa.” Portanto,
“cada um quis deixar nos bambus uma lembrança do passeio” encantador ao belo lugar.
Em conversa sobre o passeio à Vista Chinesa, considerado “magnífico”, avaliava
Ricardo: “_ É um panorama admirável; não creio que haja no mundo uma tela igual...” Em
seguida, fazendo “a descrição pitoresca da Tijuca”, dizia: “_ Mais bonito do que a Vista
Chinesa, é o Bico do Papagaio”, onde se podiam “comparar os dois picos”. Assim, Alencar
apresentava aspectos da natureza como o mar, praias, montanhas, rochas, ilhas, sol ...
como símbolos da cidade, da Corte e da nação, que lhes davam individualidade, inserindo-
se no processo de invenção de uma tradição do Rio de Janeiro como cidade maravilhosa,
cheia de recantos e encantos como Copacabana, Tijuca, Lagoa, Corcovado, Pão de
Açúcar... vazados pelo sol do verão e cenário de namoros e amores. A natureza, o relevo do
lugar, as rochas e pedras..., foram elevados à condição de monumentos da cidade e do
país, além de ressaltar sua qualidade medicinal, regeneradora da saúde.
1
ALENCAR, José de. Bênção Paterna. In: ___. Ficção Completa e outros escritos. Rio de Janeiro: Companhia
Aguilar, 1965. v. 1, p. 493.; Id., Sonhos D’Ouro, 1965, p. 500-1.
2
Id., Bênção Paterna, 1965, p. 493-4, 498.; Id., Sonhos D’Ouro, 1965, p. 513.
3
Ibid., p. 499, 536.
4
Ibid., p. 500-1.
5
ALENCAR, Sonhos D’Ouro, 1965, p. 518.; NAXARA, Márcia R. Capelari. Natureza e Identidade: três narrativas
e a natureza Brasílica. In: SEIXAS, J. A . ; BRESCIANI, M. S.; BREPOHL, M. (orgs.) Razão e paixão na
política. Brasília: EdUnB, 2002. p. 137.
6
NAXARA, 2002, p. 140. ; ALENCAR, Sonhos D’Ouro, 1965, p. 518.
7
Ibid., p. 518, 520-1, 523-5, 530, 566, 569-71, 580, 588.
8
Ibid., p. 533, 524-5. ; PRADO, M. L. C. América Latina no século XIX: tramas, telas e textos.. São Paulo:
EdUSP; Bauru: EdUSC, 1999. p. 183.
9
ALENCAR, Sonhos D’Ouro, 1965, p. 503-5, 507, 519-21, 575-6.
10
Ibid., p. 525, 530. ; PRADO, 1999, p. 192.
11
Ibid., p. 190. ; ALENCAR, Sonhos D’Ouro, 1965, p. 530-1.
12
Ibid., p. 539-40.
13
Ibid., p. 577, 581.; PRADO, 1999, p. 192-3.
14
ALENCAR, Sonhos D’Ouro, 1965, p. 542, 550-2.
15
Ibid., p. 552.
16
Ibid., p. 566, 569-71.
17
Ibid., p. 579-80.
18
Ibid., p. 580-1.
19
Ibid., p. 588, 657.
8