segunda-feira, 15 de junho de 2009

POEMAS

Adormecida

Castro Alves

Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière
La croix de son collier repose dans sa main,
Comme pour témaigner qu'elle a fait sa prière.
Et qu'elle va la faire en s'éveiliant demain.
A. DE MUSSET

Uma noite eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! tu és a flor da minha vida!..."

São Paulo, Novembro de 1868



QUADRO ARTÍSTICO


A cena numa sala pequena e atravancada;

uma mesa redonda de livros empilhada,

um piano de lado, e de outro um velador,

uma estante de livros, mobília multicor,

garrafas de cerveja, charutos e bolinhos,

cigarros sobre a mesa, o piano de mansinho

a gemer sob os dedos dum inspirado artista;

cinco sujeitos sérios, crava e atenta a vista

no teclado que brota harmonias tristonhas,

ou então se alvorota em volatas risonhas.

No mocho a fronte erguida, um rapaz aloirado,

com um charuto na boca, olhar vivo, inspirado,

improvisa; distante, um outro, no sofá,

de mão no queixo, absorto, embevecido está.

Os cigarros apagam-se esquecidos, e, frias,

no chão as cinzas caem ao som das harmonias.

Na secretária, um outro, escutando esses trinos,

escreve numa tira alguns alexandrinos.

Artistas todos são, e ali, naquela sala,

emudecem todos; somente o piano fala.



PROFISSÃO DE FÉ


Odeio as virgens pálidas, cloróticas,

Beleza de missal que o romantismo

Hidrófobo apregoa em peças góticas,

Escritas nuns acessos de histerismo.



Sofismas de mulher, ilusões óticas,

Raquíticos abortos de lirismo,

Sonhos de carne, compleições exóticas,

Desfazem-se perante o realismo.



Não servem-me esses vagos ideais

Da fina transparência dos cristais,

Almas de santa e corpo de alfinim.



Prefiro a exuberância dos contornos,

As belezas da forma, seus adornos,

A saúde, a matéria, a vida enfim.



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