Adormecida
Castro Alves
Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière
La croix de son collier repose dans sa main,
Comme pour témaigner qu'elle a fait sa prière.
Et qu'elle va la faire en s'éveiliant demain.
A. DE MUSSET
Uma noite eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras
Iam na face trêmulos — beijá-la.
Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! tu és a flor da minha vida!..."
São Paulo, Novembro de 1868
QUADRO ARTÍSTICO
A cena numa sala pequena e atravancada;
uma mesa redonda de livros empilhada,
um piano de lado, e de outro um velador,
uma estante de livros, mobília multicor,
garrafas de cerveja, charutos e bolinhos,
cigarros sobre a mesa, o piano de mansinho
a gemer sob os dedos dum inspirado artista;
cinco sujeitos sérios, crava e atenta a vista
no teclado que brota harmonias tristonhas,
ou então se alvorota em volatas risonhas.
No mocho a fronte erguida, um rapaz aloirado,
com um charuto na boca, olhar vivo, inspirado,
improvisa; distante, um outro, no sofá,
de mão no queixo, absorto, embevecido está.
Os cigarros apagam-se esquecidos, e, frias,
no chão as cinzas caem ao som das harmonias.
Na secretária, um outro, escutando esses trinos,
escreve numa tira alguns alexandrinos.
Artistas todos são, e ali, naquela sala,
emudecem todos; somente o piano fala.
PROFISSÃO DE FÉ
Odeio as virgens pálidas, cloróticas,
Beleza de missal que o romantismo
Hidrófobo apregoa em peças góticas,
Escritas nuns acessos de histerismo.
Sofismas de mulher, ilusões óticas,
Raquíticos abortos de lirismo,
Sonhos de carne, compleições exóticas,
Desfazem-se perante o realismo.
Não servem-me esses vagos ideais
Da fina transparência dos cristais,
Almas de santa e corpo de alfinim.
Prefiro a exuberância dos contornos,
As belezas da forma, seus adornos,
A saúde, a matéria, a vida enfim.
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