sábado, 19 de julho de 2008

1.1 Gregório de Matos - Obra


Gregório de Matos foi o primeiro poeta a cantar o elemento brasileiro, o tipo local, produto do meio geográfico e social. Influenciado pelos mestres espanhóis da Época de Ouro Góngora, Quevedo, Gracián, Calderón sua poesia é a maior expressão do Barroco literário brasileiro, no lirismo. Sua obra compreende: poesia lírica, sacra, satírica e erótica. Ao seu tempo a imprensa estava oficialmente proibida. Suas poesias corriam em manuscritos, de mão em mão, e o Governador da Bahia D. João de Alencastre, que tanto admirava "as valentias desta musa", coligia os versos de Gregório e os fazia transcrever em livros especiais. Ficaram também cópias feitas por admiradores, como Manuel Pereira Rabelo, biógrafo do poeta. Por isso é temerário afirmar que toda a obra a ele atribuída haja sido realmente de sua autoria. Entre os melhores códices e os mais completos, destacam-se o que se encontra na Biblioteca Nacional e o de Varnhagen no Palácio Itamarati.
Sua obra foi editada na Coleção Afrânio Peixoto (1a fase), da Academia Brasileira de Letras, em seis volumes, assim distribuída: I Sacra (1923); II Lírica (1923); Graciosa (1930); IV-V Satírica (1930); VI Última (1933). Na Biblioteca Municipal de São Paulo há uma cópia datilografada dos versos pornográficos de Gregório de Matos, com o título Satyras Sotádicas de Gregório de Matos.

Sobre as composições líricas de Gregório, afirma Antônio Candido, na Presença da Literatura brasileira, que elas são uma "pesquisa das emoções raras, desvendamento das contradições, busca da unidade sobre a adversidade,(...). A isso se junta o senso vivo do pecado, o desejo de perdão e uma ânsia comovedora de pureza, para dar à sua obra lírica, tanto amorosa como religiosa, um vigoroso refinamento". A seguir, um soneto religioso de Gregório:



BUSCANDO A CRISTO


A vós correndo vou, braços sagrados,

Nessa cruz sacrossanta descobertos,

Que, para receber-me, estais abertos,

E, por não castigar-me, estais cravados.


A vós, divinos olhos, eclipsados

De tanto sangue e lagrimas abertos,

Pois, para perdoar-me, estais despertos,

E, por não condenar-me, estais fechados,


A vós, pregados pés, por não deixar-me,

A vós, sangue vertido, para ungir-me,

A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me.


A vós, lado patente, quero unir-me,

A vós, cravos preciosos, quero atar-me,

Para ficar unido, atado e firme.



O poeta atribui um sentido simbólico ao corpo de Cristo, vendo nele o abrigo que sua alma deseja. Se, de um lado, o corpo pregado na cruz transmite impressão de grando sofrimento, por outro é esse mesmo sofrimento que dará ao poeta o perdão e a salvação, pois Cristo morreu na cruz para salvar a humanidade.

Reparemos também que o poeta, à medida que descreve o corpo de Cristo, revela a dimensão espiritual do sofrimento físico. Os braços estão abertos para amparar e abrigar o pecador, mas estão cravados e imóveis para castigar, por exemplo. No último terceto, o desejo de união com espiritual com Cristo é representado pelo desejo de união física. O poeta quer prender-se ao corpo sagrado, quer ficar cravado na cruz com Ele; o desejo de identificação é total:"para unido, atado e firme". Quanto ao estilo, o soneto iniciou várias vezes com a expressão "A vós", dando ao texto um ritmo de ladainha, oração. E como podemos observar, no texto estão presentes a razão e a emoção, a tensão entre a consciência do pecado e o desejo de salvação. Essa oscilação que leva o homem do céu ao inferno, que mostra sua dimensão carnal e espiritual, é uma das tônicas do Barroco.
A oscilação da alma barroca entre o mundo terreno e a perspectiva da salvação eterna aguça-se em Gregório de Matos Guerra. Até meados do século XVIII, nenhum homem de letras pode fugir a uma educação contra-reformista, pois os jesuítas controlam todo o sistema de ensino. Desta forma, ilustrar-se só será possível dentro dos preceitos da Companhia de Jesus, o que acontece com o futuro poeta.
Por outro lado, Gregório é filho de senhores de engenho, quer dizer, dos verdadeiros senhores da terra, dos que possuem todos os direitos, inclusive o de vida e morte e que, por isso, podem exercer o estupro ou o simples domínio sexual sobre índias e escravas. Estão presentes nele, portanto, os elementos contraditórios da época: a licenciosidade moral e a posterior consciência da infâmia, seguida do arrependimento.
Na maior parte de seus poemas religiosos, o poeta se ajoelha diante de Deus, com um forte sentimento de culpa por haver pecado, e promete redimir-se. Trata-se de uma imagem constante: o homem ajoelhado, implorando perdão por seus erros, conforme podemos verificar no primeiro quarteto do soneto Buscando a Cristo:
A vós correndo vou, braços sagrados,Nessa cruz sacrossanta descobertos,Que, para receber-me, estais abertos,E, por não castigar-me, estais cravados.
O exemplo mais conhecido de sua literatura sacra é o soneto A Jesus Cristo Nosso Senhor. Numa curiosa dialética, o poeta apela para a infinita capacidade de Cristo em redimir os piores pecadores, alegando que a ausência de perdão representaria o fim da glória divina. Trata-se, pois, de um poema simultaneamente contrito e desafiador, humilde e presunçoso.



Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,

Da vossa alta clemência me despido;

Porque quanto mais tenho delinqüido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.


Se basta a vos irar tanto pecado,

A abrandar-vos sobeja* um só gemido:

Que a mesma culpa que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.


Se uma ovelha perdida e já cobrada

Glória tal e prazer tão repentino

Vos deu, como afirmais na sacra história,


Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,

Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.


* Sobeja: basta.





Poesia Amorosa


Seguindo o modelo dos barrocos espanhóis, Gregório apresenta uma visão cindida das relações amorosas. Ora seus poemas tendem a uma concepção "petrarquista"*, isto é, à idealização dos afetos em linguagem elevada; ora a uma abordagem crua e agressiva da sexualidade em linguagem vulgar.
* Petrarquista: referente ao poeta italiano Petrarca, (1304-74), cuja obra difunde por toda a Europa o gosto pela poesia amorosa e pelo soneto.


A) O amor elevado
Exemplo dessa perspectiva é um dos sonetos dedicados a D. Ângela, provável objeto da paixão do poeta e que o teria rejeitado por outro pretendente. Observe-se o jogo de aproximações entre as palavras anjo e flor para designar a amada. Observe-se também que, ao mesmo tempo tais vocábulos possuem um caráter contraditório (anjo = eternidade; flor = brevidade). Como sugere um crítico, esta duplicidade de Angélica lança o poeta em tensão e quase desespero ("Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.")


Anjo no nome, Angélica na cara!

Isso é ser flor, e Anjo juntamente:

Ser Angélica flor, e Anjo florente*

Em quem, senão em vós, se uniformara?


Quem vira uma tal flor, que a não cortara,

De verde pé, da rama florescente?

A quem um Anjo vira tão luzente

Que por seu Deus o não idolatrara?


Se pois como Anjo sois dos meus altares,

Fôreis o meu custódio*, e minha guarda,

Livrara eu de diabólicos azares.


Mas vejo que tão bela, e tão galharda,

Posto que* os Anjos nunca dão pesares,

Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.


* Florente: florido.* Custódio: defesa* Posto que: ainda que.


B) O amor obsceno-satírico
Se o erotismo é a exaltação da sensualidade e da beleza dos corpos, independentemente da linguagem, que pode ser aberta ou velada; se a pornografia é a busca do sexo proibido e culpado através de imagens grosseiras e chocantes e valendo-se quase sempre de uma forma vulgar; a obscenidade situa-se noutra esfera. Ela não visa ao sensualismo refinado do erotismo nem à excitação cafajeste da pornografia. Não se trata, pois, de uma estimulação dos sentidos, e sim uma espécie de protesto contra o sistema moral, contra as concepções dominantes de amor e de sexo, e contra o próprio mundo. Às vezes, a obscenidade toma o sentido de um culto rude e subversivo do prazer contra os tabus que impedem a plena realização da libido*.
Na poesia obscena-satírica, Gregório de Matos não apresenta qualquer requinte voluptuoso. Sua visão do amor físico é agressiva e galhofeira. Quer despertar o riso ou o comentário maldoso da platéia. Por isso, manifesta desprezo pela concepção cristã do amor que envolve a camada espiritual, conforme podemos verificar no texto abaixo:
O amor é finalmenteum embaraço de pernas,uma união de barrigas,um breve tremor de artérias.Uma confusão de bocas,uma batalha de veias,um reboliço de ancas,quem diz outra coisa, é besta.
Nos seus momentos mais vulgares, Gregório se torna muito engraçado, tanto pela variedade dos palavrões como pelas descrições desbocadas dos atos e órgãos sexuais. Há, contudo, em muitos poemas expressões do mais terrível machismo e, sobremodo, um desprezo pelas mulheres, (em especial, negras e mulatas), que beira a misoginia*.



* Libido: instinto sexual.* Misoginia: ódio por mulheres




Poesia Satírica


O desengano barroco tem como uma de suas conseqüências o implacável gosto pela sátira. Resposta a uma realidade que os artistas julgam degradada, a poesia ferina e contundente não perdoa nenhum grupo social. Ricos e pobres são fustigados pelas penas corrosivas de Góngora, de Quevedo, como mais tarde o fará o brasileiro Boca do Inferno. Esta ironia cáustica e por vezes obscena é traço marcante do barroco ibérico.
Quando retorna ao Brasil, já quarentão, em 1682, Gregório de Matos encontra uma sociedade em crise. A decadência econômica torna-se visível: o açúcar brasileiro enfrenta a concorrência do açúcar produzido nas Antilhas e seu preço desaba. Além disso, uma nova camada de comerciantes (em sua maioria, portugueses) acumula riquezas com a exportação e importação de produtos. Esta nova classe abastada humilha aqueles que se julgam bem nascidos, mas que, dia após dia, perdem seu poder econômico e seu prestígio.


O crítico José Miguel Wisnik capta bem o estado de espírito do poeta:
Filho de um senhor de engenho encontra o engenho em plena crise, é seu mundo usurpado por aquilo que ele vê como o arrivismo oportunista dos pretensos e falsos nobres, os negociantes portugueses. O bacharel vive a farsa das instituições jurídicas (...) O poeta culto se vê num meio iletrado. A literatura está sufocada nos "auditórios - de Igreja, academia, comemoração" - praticada por juristas, sacerdotes e burocratas, realizando a apologia do sistema. Na vida concreta, Gregório de Matos visualiza as idéias barrocas do "desengaño del mundo", do desconcerto da existência.
Contra tal ordem de coisas, contra este novo mundo, que revirou todos os princípios e hierarquias, que pôs tudo de cabeça para baixo, que está afundando a sua classe, ele vai protestar. O protesto dá-se através da linguagem poética, transformada quase sempre em caricatura, ofensa, praguejar, explosões de um cinismo cru e sem piedade. O gosto do poeta pelo insulto leva-o a acentuar os aspectos grotescos dos indivíduos e do contexto baiano como neste soneto em que descreve a cidade da Bahia (Salvador):

A cada canto um grande conselheiro,

Quer nos governar cabana e vinha,

*Não sabem governar sua cozinha,

E podem governar o mundo inteiro.


Em cada porta um freqüente olheiro,

Que a vida do vizinho, e da vizinha

Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,

Para a levar à Praça e ao Terreiro.


Muitos mulatos desavergonhados

Trazidos pelos pés os homens nobres,

Posta nas palmas toda a picardia.


*Estupendas usuras* nos mercados,

Todos os que não furtam muito pobres:

E eis aqui a cidade da Bahia.




Cabana e vinha: no sentido de negócios particulares.

Picardia: esperteza ou desconsideração.

Usuras: juros ou lucros exagerados.

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